O sistema de saúde brasileiro é composto por um intrincado complexo de normas e regulamentos que, em princípio, deveriam ser suficientes para assegurar o acesso constitucional a saúde de todos os brasileiros.
Ao menos esta era a ideia da Constituinte de 1988 quando fixou o Art. 196 da Magna Carta dizendo que A saúde é um direito de todos e um dever do Estado com ampla previsão a prevenção de doenças e acesso universal e igualitário aos melhores práticas.
Sem deixar o privado de fora, a Constituição trouxe no Art. 199 a atividade secundária do mercado privado de saúde, referendando claramente: A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
Apesar de parecer lógico e para muitos não há nenhuma novidade em tudo isto, é preciso que todas as vezes que se fizer uma reflexão sobre saúde suplementar, a Ordem Constitucional esteja clara.
E isto porque, presume-se que o P. Legislativo e especialmente o P. Executivo orientem a produção legislativa, e os rumos das atividades da Administração Pública (mérito administrativo), aí incluídas as políticas públicas para a saúde, no que está determinado pela Magna Carta de 1988. É a constituição quem diz como o Estado é formado e organizado.
Pontuado o que parece simples, passemos a uma reflexão breve do que é verdadeiramente complexo.
Passados 30 anos da Constituição o Estado de bem estar social por ela determinado ainda está distante de se tornar uma realidade. O Brasil mudou, deixou de enxergar o Estado como um Ente Gerencial e vem cada vez mais o enxergando como um Ente Fiscalizador da atividade econômica, e que com isto, passou a contar com o privado para a gestão da coisa pública.
E neste vácuo da ausência do Estado a medicina privada ganhou corpo, em especial, no ano de 1999 com a criação do marco regulatório da saúde suplementar, e no ano seguinte, com a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Com o marco regulatório, decidiu o P. Legislativo que caberia a Agência criada pelo P. Executivo, a fixação das coberturas obrigatórias a serem minimamente inseridas em todos os contratos (Art. 10, §4º da Lei 9.656/98 c/c Art. 4º, inc. III, da Lei 9.961/00).
Com a determinação do P. Legislativo, que é compatível com a Ordem Constitucional, na medida em que decidiu o legislador pátrio que as coberturas dos contratos de planos de saúde seriam aquelas previstas por normativa, não se aplicando ao privado o acesso universal, coube ao P. Executivo, por meio do Ministério da Saúde e da ANS, fixar as regras para a criação desta lista.
A lei fixou que todas as doenças identificadas no Código Internacional de Doenças (CID-10) tem cobertura obrigatória, no entanto, determinou que a cobertura dos contratos poderia estar adstrita ao Rol de Procedimentos e Eventos criado pela ANS (Art. 10 da Lei 9.656/98).
Diante da autorização constitucional e legislativa, a ANS criou o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, atualmente listado na Resolução Normativa ANS nº 428/17, e que sofre atualizações bienais para fins de se adequar as novas tecnologias, inovações, e tempo necessário para estudos técnicos e análise de custo x eficácia dos tratamentos.
Portanto estamos diante do mérito administrativo do P. Executivo na fixação da política pública voltada a para o mercado de saúde suplementar, que objetiva abranger um conjunto de doenças e procedimentos que serão cobertos por Operadoras de Planos de Saúde, retirando do SUS o ônus com a cobertura destes procedimentos.
Age o mercado privado, portanto, desonerando o SUS em franca estratégia pública para a desoneração do SUS, atendendo inclusive, ao princípio da solidariedade (fundamento do instituto do ressarcimento ao SUS), na medida em que os beneficiários de planos de saúde são novamente onerados pelo custo da saúde privada.
Tudo isto tem relevância porque o P. Judiciário consolidou entendimento razoavelmente recente, no sentido de que os contratos de planos de saúde que fixam como base de cobertura apenas o Rol violariam direitos do consumidor, por excluir vantagens que deveriam estar previstas no contrato, e ainda, incumbe ao privado a substituição integral do Estado.
Ora, não é isso o que foi preconizado nem pela Constituição, nem pela Lei, nem pelas políticas públicas definidas pelo Ministério da Saúde.
Cabe ao P. Judiciário este excesso de intervenção?
Certo é que não se trata de merecimento do paciente que busca no P. Judiciário a tutela da salvaguarda de sua saúde, mas sim da ordem de obrigação prevista pela Constituição.
Aquele beneficiário coberto na saúde suplementar, com base no Rol, já desonerou o SUS de tudo o que está previsto ali. Logo, caberia ao Estado, titular da obrigação, conferir a cobertura para o que não está previsto no Rol.
Isto é o que está escrito na Lei.
Aliás, certo é também que se viola o direito dos demais consumidores vinculados ao contrato onde foi deferida a ordem extra rol. E isto porque, quem suporta os custos do atendimento é aquele grupo de pessoas reunidas em torno do contrato, que ajustaram que suportariam as despesas médicas uns dos outros, desde que atendidos os requisitos previstos pela ANS.
E este custo excepcional (que pertence ao Estado) será coberto pelos demais beneficiários que compõem o contrato e que não anuíram com aquela conduta, tornando o reajuste para o equilíbrio do contrato cada vez maior.
De certo que qualquer demanda judicial decorrente da saúde suplementar, tem como questão central a tutela da saúde, como reflexo do direito a vida, no entanto, o P. Judiciário possui mecanismos capazes de assegurar a tutela destes interesses individuais, sem que para tanto seja necessário alterar a Ordem Constitucional.
É extremamente relevante que se acenda o debate desta questão sob o viés das políticas públicas voltadas para saúde, porquanto vive-se na saúde suplementar, um conjunto de incertezas e insegurança jurídica que não são compatíveis com os ideais do País.