Por Bruno Marcelos
A questão relacionada ao Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde segue polêmica. Em recente julgamento, a 2ª seção do STJ fixou tese no sentido da taxatividade do rol, com exceções, e o fim do julgamento inaugurou imediatamente a discussão do tema no STF, em razão das ADIs 7088, 7183 e 7193, e ADPFs 986 e 990. As demandas têm como relator o Min. Luis Roberto Barroso que convocou audiência pública sobre o tema, motivando sua decisão na avaliação interdisciplinar.
O fundamento da decisão é de especial interesse para resposta que se buscará conferir a questão. E isto porque, a questão decidida no STJ chega ao STF em razão da clara aplicação do princípio da juridicidade, portanto, identificam as ações que a RN ANS 465/22 fere diretamente a constituição, fato este que atrai a competência da Corte Constitucional.
Acontece que a resposta para a questão reside no conteúdo da norma. E isto porque, a saúde suplementar deve ser compreendida como um dos subsistemas que compõe a política pública para a saúde no país, e neste contexto, a ordem constitucional busca meios para assegurar os direitos e princípios constitucionais de acesso e garantia de saúde aos beneficiários.
A questão, portanto, não residiria na norma que expressamente atrai a taxatividade do Rol, mas sim, na suficiência do processo de atualização do rol, ou seja, se a extensão do rol e seu processo contínuo de atualização atendem aos preceitos constitucionais discutidos nestas demandas.
Para atender os objetivos do artigo, trataremos da questão jurídica que envolve a questão e para isto devemos percorrer o caminho que demonstre a natureza dos atos regulatórios. Pois bem, para isto precisamos olhar para dentro do ato regulatório compreendendo sua origem, para nos socorrer ao final da já confirmada tese do Prof. Sergio Guerra sobre a natureza do ato regulatório pela reflexividade administrativa[1][2].
A premissa base de todo o arcabouço técnico jurídico que se busca estabelecer decorre da evolução do direito administrativo para a atual pós-modernidade, e isto porque, se Legalidade e os próprios atos discricionários eram, até o início dos anos 1990 avaliados sob a rigidez das escolhas políticas delegadas, a pós-modernidade não admite a leitura destes sem a sua conjunção com os princípios Constitucionais e sem adequada motivação, este último que ganhou maior relevo com as mudanças ocorridas na Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (LINDB) que passou a prever expressamente o dever de motivação das escolhas administrativas.
Com esta premissa, passemos a analisar a norma regulatória discutida considerando brevemente as teorias clássicas os atos administrativos convencionais para os refutando, ao final identificar que este se trata de novo instituto de direito administrativo, a reflexividade administrativa.
Podemos ter como ponto de partida, o mais simples: evidente que os atos regulatórios não são atos legislativos natos, porquanto não foram produzidos pelo Congresso Nacional, ou seja, não emanam do Poder Legislativo que possui poder legiferante pleno fixado pelo voto.
No que toca ao Decreto Autônomo poucas dúvidas existem, na medida em que este somente pode ser expedido pelo Presidente da República em causas fixadas expressamente pela CRFB/88.
A questão começa a ganhar corpo com a análise do regulamento autônomo, porquanto estes já foram admitidos em alguma medida pelo STF para justificar os atos regulatórios exarados pelas Agências Reguladoras. O argumento, segundo o Sergio Guerra é o seguinte[3]:
O argumento presente é de que há certas hipóteses em que não é possível conferir fiel regulamentação à lei sem dispor sobre certos aspectos implícitos na ratio essendi daquela, e sem cuja normatização, por inteiro, e em todos seus aspectos, sobretudo os de ordem técnica, não é possível conferir-lhe fiel executoriedade.
Neste contexto, resta a tese enfrentar a discricionariedade administrativa, que já se antecipa, deve ser avaliada como sinônimo da discricionariedade técnica. Aqui reside a pós-modernidade do direito administrativo. E isto porque, os critérios de conveniência e oportunidade do passado passaram a ser revisitados pelo Judiciário em decorrência da juridicidade e da motivação, e neste contexto, passa-se a identificar que os atos regulatórios diferem dos atos do P. Executivo.
E isto porque, os atos discricionários decorrentes do P. Executivo são aqueles produzidos nos espaços legais e produzidos no exercício da função política, voltada a interesses de governo, que visa impor regras de caráter secundário em complementação às normas legais (primárias), com o objetivo de explicitá-las e dar-lhes execução.
Já a regulação é uma função administrativa que não decorre da prerrogativa do poder político, e sim da abertura da lei (maleabilidade normativa, com standards e princípios inteligíveis) para que o agente regulador pondere, de modo neutro, os interesses concorrentes em conflitos setoriais.
E isto afasta a discricionaridade dos atos regulatórios, porque os critérios de conveniência e oportunidade próprios dos atos discricionários são produzidos nos espaços de escolhas definidos pela lei ou decretos, com escolhas políticas, estas que não guardam relação com a atividade regulatória que se pressupõe produzidas dentro da neutralidade e de elevada tecnicidade.
Note que mesmo o processo de escolhas regulatórias se pauta pelo conjunto normativo e político, porque devem as agências, mesmo diante de sua autonomia, atenderem as determinações normativas e políticas emanadas dos Poderes.
Com efeito já é possível afirmar dois pontos relevantes: os atos regulatórios são (1) deslegalizados e (2) se deve identificar o conteúdo da norma e não sua forma, e neste contexto, o instituto da Reflexividade Administrativa, criado pelo prof. Sergio Guerra, caminha no sentido de viabilizar a autonomia regulada dos sistemas, facilitando a maximização de sua racionalidade interna mediante adequados procedimentos de formação do consenso e tomada de decisão coletiva.
Neste contexto o emérito professor fixou seis contornos da reflexividade administrativa, a saber:
1 – a reflexividade corresponde à formula que dá base à atuação das entidades descentralizadas e com certo grau de independência decisória da Administra Pública direta na regulação de atividades econômicas e sociais (escolha regulatória), que surge quando sua atividade está autorizada, de modo geral e abstrato, em lei (standards e princípios inteligíveis).
2- a reflexividade não se sustenta na oportunidade e conveniência de agir do administrador público – deve se basear na situação concreta, em si mesma, de maneira cíclica, prospectiva, para estabilizar sistemas complexos e minimizar a insegurança jurídica.
3 – por meio da reflexividade deve-se buscar a prevenção regulatória de riscos sistêmicos que possam comprometer os direitos dos envolvidos e, prospectivamente, o equilíbrio do subsistema regulado
4 – a fórmula da reflexividade administrativa deve ser de base para a busca e concretização procedimentalizada da mediação regulatória dos interesses ambivalentes identificadas pela Administração Pública, por agentes regulados (e seus representantes) e pela sociedade em geral, priorizando-se a participação dos interessados na decisão final.
5 – mediante a reflexividade administrativa as experiências técnicas e científicas, as práticas inovadoras e pesquisas, os dados empíricos e estudos que trabalhem com custo benefícios devem ser permanentemente acompanhados, avaliados, apropriados, renovados e disponibilizados pelo ente regulador com vistas ao estabelecimento de certa “previsibilidade do curso dos acontecimentos”
6 – o regulador, sempre que comprovada a necessidade de reequilíbrio do subsistema regulado (ou autorregulado) de acordo com as informações colhidas, disponibilizadas e debatidas com a sociedade e, notadamente, com os afetados pela escolha – por meio da permeabilização das fronteiras dos sistemas jurídico, econômico e social -, deverá promover os ajustamentos devidos, correspondendo esta conformação ao mérito da escolha regulatória.
A tese aqui esposada serve de fundamento para a audiência pública, mas, ao mesmo tempo, indica que a norma regulatória terá sua resposta data pelos subsistemas que integram o sistema da saúde suplementar (econômico, médico, etc), bem como que a resposta para a questão reside mais profundamente no processo de atualização e na ponderação dos interesses antagônicos sopesados de forma neutra pela norma regulatória.
[1] GUERRA, Sergio. Discricionariedade, Regulação e Reflexividade, uma nova teoria sobre as escolhas administrativas. 6ª ed. Editora Forum: Rio de Janeiro, 2021
[2] A indicada tese já foi confirmada pelo E. STF, por todos, veja-se o voto do Min. Luis Fux no julgamento da análise da constitucionalidade do exame da OAB, de onde se registra: Portanto conferir à entidade de classe a fixação dos marcos regulatórios que orientarão a atividade profissional de seus próprios filiados é, em princípio, consagrar a reflexividade: uma nova teoria das escolhas administrativas que, segundo Sergio Guerra (Discricionaridade e reflexividade: uma nota teoria sobre as escolhas administrativas) legitima a atividade regulatória
[3] GUERRA, Sergio. Discricionariedade, Regulação e Reflexividade, uma nova teoria sobre as escolhas administrativas. 6ª ed. Editora Forum: Rio de Janeiro, 2021, 231/232