Com o alargamento da crise econômica, os números apresentados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, vem demonstrando o aumento da inadimplência dos planos de saúde, bem como a elevação no número de quebras das Operadoras de Planos de Saúde.
E esta situação, que termina por devolver ao Sistema Único de Saúde ex beneficiários de planos de saúde, apenas agrava a saúde pública, considerando para isto que os últimos números do Ministério da Saúde apontam para a redução de mais de 23.565 leitos.
Apesar de algumas questões já terem sido apontadas pelo Ministério da Saúde com a finalidade de flexibilizar as regras dos planos de saúde, inclusive, com a proposta de criação de uma nova modalidade de plano com menos coberturas que o plano ambulatorial, ou ainda, como o exposto em seminário promovido pelo Instituto de Estudos sobre Saúde Suplementar (IESS) sobre novos produtos para a Saúde Suplementar, apresentando como forma para o enfrentamento da crise, a possibilidade de criação de plano que se utilize do sistema de contas de poupança, e ainda, com franquia anual, é preciso enfrentar uma questão já antiga e que por si só, já causou a quebra de diversas Operadoras de Planos de Saúde: O ressarcimento ao SUS.
O instituto do Ressarcimento ao SUS, criado pela Lei 9.656/98, determina que os atendimentos realizados junto a rede SUS, de beneficiários de planos de saúde privados, deverão ser ressarcidos pelas Operadoras ao SUS, em valores equivalentes a 1,5 vezes o valor da tabela SUS.
Isto significa, que um beneficiário de plano de saúde, que por exemplo, for atendido em um hospital público, terá seu atendimento computado pelo Ministério da Saúde, e este atendimento será cobrado da Operadora de Planos de Saúde.
Mas, qual a questão relevante sobre o assunto?
Estes atendimentos cobrados das Operadoras entram no cômputo do cálculo para o reajuste dos planos de saúde. Impondo ao beneficiário o pagamento pelo atendimento junto ao SUS, este que já estaria coberto pelo pagamento dos impostos ao Estado.
Em razão deste absoluto contrassenso com a lei, conseguimos apontar algumas questões que indicariam para a irregularidade da cobrança do Ressarcimento ao SUS.
1 – A Interpretação Inconstitucional do Instituto
Inicialmente, recordamos que já existe uma Ação Direta de Inconstitucionalidade em trâmite junto ao STF desde 2001, discutindo diversos artigos da lei 9.656/98 (lei que regulamenta os planos de saúde), incluindo-se dentre eles o Art. 32, que trata do ressarcimento ao SUS. A citada ação possui decisão liminar mantendo a constitucionalidade do instituto, no entanto, com o passar dos anos e a evolução do ressarcimento passaram a descrever novas teorias que apontam para a sua irregularidade.
Para tratarmos do tema, precisamos partir das mesmas premissas, para isto, remetemos a leitura do Art. 196 da Constituição de 1988, que assim dispõe: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
A Lei Maior determina que a Saúde é dever do Estado, portanto, incumbe primariamente ao Estado Brasileiro a prestação da saúde a todos os cidadãos.
E continua a Constituição em seu Art. 199: A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
Portanto, pela leitura da Constituição compreendemos que o dever primário de prestar a saúde é do Estado, cabendo a iniciativa privada a atividade complementar da saúde.
Transpondo a questão para a questão desta matéria, podemos extrair a premissa de que os atendimentos de saúde prestados pelas Operadoras representam verdadeiro benefício ao SUS, visto que deixam de dispender recursos para atendimento daquele cidadão, que tem seu atendimento assegurado pelo SUS por força da Constituição.
Com isso, a lógica do Art. 32 da Lei 9.656/98 está invertida, visto que todos nós cidadãos temos direito ao atendimento pela rede SUS, e tecnicamente, não deveriam haver planos privados de assistência à saúde, visto que ao SUS cabem todos estes atendimentos, o entanto, resta simples identificar que a realidade é outra: o SUS não tem capacidade de prestar atendimento, com a mínima qualidade, a todos os cidadãos.
Logo, esta interpretação do Ressarcimento ao SUS é inconstitucional, visto que transmite ao privado a responsabilidade pelo atendimento que diretamente é cabível ao SUS.
Outro ponto relevante está em declaração do próprio Ministério da Saúde, ao afirmar que o ressarcimento ao SUS representaria nova fonte de custeio do SUS. Compreendendo esta questão, estamos diante de mais uma inconstitucionalidade, agora, por vício de iniciativa. E isto porque, conforme termos do Art. 195, §4° c/c Art. 154, inc. I, ambos da Constituição de1988, somente pode ser instituída novas formas de custeio da seguridade social por meio de Lei Complementar, e a lei que institui do ressarcimento ao SUS tem natureza jurídica de Lei Ordinária, portanto, mais uma vez, inconstitucional o instituto.
A ANS, no cumprimento de seu dever institucional de defender o ressarcimento, alega que a questão encontra-se com liminar do Supremo que assegura a sua constitucionalidade, e ainda, informa que a questão se apoia no princípio da Solidariedade, ou seja, os beneficiários de planos de saúde devem pagar por estes atendimentos prestados pelo SUS, como forma de ajudar a suportar o SUS.
Em continuação, em nosso entendimento é constitucional. Apesar do exposto, existe solução de continuidade para a Lei, se compreendermos as hipóteses em que o beneficiário de planos de saúde busca atendimento junto a rede privada conveniada ao plano, e este atendimento é irregularmente negado, e por isto, ele é obrigado a buscar a rede SUS. Nesta hipótese, é muito claro o direito da ANS em exigir da Operadora a recomposição do SUS em razão da negativa injustificada do atendimento ao cidadão.
2 – A Ilegalidade do Ressarcimento
Tendo por premissa o exposto no que concerne a inconstitucionalidade o instituto do Ressarcimento ao SUS, temos que outras teses pautadas na ilegalidade da cobrança foram vislumbradas.
A outra tese que explicaria a ilegalidade do Ressarcimento a SUS tem base na tese exposta pela própria ANS em suas demandas, e que foi construída pelo Procurador Federal Dalton Robert Tibúrcio, em artigo científico que trata da natureza jurídica do instituto, e foi escrito em contraponto ao parecer do ex-ministro CARLOS MARIO DA SILVA VELOSO que defende que o instituto teria natureza de obrigação civil.
Segundo o citado procurador, haveria uma confusão entre fonte e fundamento da obrigação, onde equivocadamente se enquadraria a vedação ao enriquecimento sem causa como fonte da obrigação, e para ele, a vedação estaria no campo do fundamento.
A fonte da obrigação seria, portanto, o Art. 32, da Lei 9.656/98, asseverando:
O fato humano eleito pela lei como idôneo a fazer nascer a obrigação de ressarcimento ao SUS é a prestação de serviços de atendimento à saúde em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde-SUS, prestados aos consumidores e respectivos dependentes das operadoras de planos privados de assistência à saúde. Uma vez ocorrido este fato da vida, incide a previsão do art. 32, da Lei nº 9.656/98, fazendo nascer a obrigação de ressarcimento ao SUS.
Com isto, a vedação ao enriquecimento sem causa assumiria vertente de princípio de direito, sendo um dos fundamentos da obrigação, mas não podendo ser vista como fonte do direito, posto que este princípio, no caso, não seria fonte.
Em continuação, o autor informa que o instituto seria mais bem compreendido se analisado sob o prisma da teoria das externalidades, mas especificamente das externalidades negativas, esta muito festejada no direito ambiental, mas com pouca aplicação concreta no direito brasileiro.
Ocorre externalidade quando há um impacto (positivo ou negativo) sem ser por uma transação negocial. Um dos exemplos mais famosos é o do fumante e do não fumante, em que o agente que fuma causa um impacto negativo para o não fumante por causa da fumaça e não compensa de nenhuma outra forma por este mal-estar.
Com base no conceito, inferimos que as externalidades negativas estão relacionadas ao excesso de custo social da produção, ou seja, o custo para a produção do bem ou do serviço é socialmente maior do que o seu valor social.
Segundo os ambientalistas, a solução para a questão seria a de “internalizar” as externalidades, ou seja, fazer com o que as empresas tragam este custo marginal para dentro da produção. Nesta esteira duas teorias surgiram, o Teorema de Coase e o Imposto de Pigou.
Com a finalidade de não estendermos desnecessariamente nestas teses, informam os autores em suma, que a internalização deveria ser feita através da avaliação dos custos marginais, sendo estes custos incluídos na produção, resolvendo-se a questão na esfera privada através da negociação (Teorema de Coase); ou ainda, o Estado deve avaliar o mercado e os custos da produção e implementar impostos e subsídios a serem pagos pelos poluidores como medida compensatória (Imposto de Pigou).
Trazendo as teorias supra identificadas para o ressarcimento ao SUS, concluímos que o Estado (unidade de produção), ao atender o paciente beneficiário de plano de saúde, está beneficiando a terceiros (operadoras de saúde) que passam a aferir vantagem deste atendimento, em verdadeira situação descrita como externalidade negativa, posto que o custo social foi dividido por toda a sociedade, e a OPS teria se beneficiado marginalmente disto.
A presente teoria é uma das teses de eleição da ANS para justificar a natureza jurídica do instituto, no entanto, há uma relevante questão que deve ser considerada, e que ainda não foi respondida pela doutrina ou pela jurisprudência.
Em se considerando a tese exposta como válida, levando em conta por isto a aplicação da tese da externalidade negativa, é possível enxergar que o valor pago pelos beneficiários as Operadoras como sendo ato negocial de controle destas externalidades, em perfeita compatibilidade com a Teoria de Coase.
Isto porque, para a fixação dos valores de pagamento das mensalidades, as Operadoras consideram: os valores dos concorrentes, os custos do atendimento, e principalmente, suas taxas de sinistralidade, ou seja, a percentual de vezes que deverá custear o tratamento dos beneficiários.
Fato este, inclusive, reconhecido pela própria ANS, que se utiliza na fórmula de reajuste os valores descritos pelo Ressarcimento ao SUS.
Logo, considerando a atuação subsidiária do mercado privado de atenção a saúde, o aspecto da formação do preço que passa pelo atendimento de requisitos de mercado e dos atendimentos que são prestados pelo próprio Estado, denota-se que o custo marginal já está abrangido. Isto porque, as Operadoras quando retiram o paciente do SUS agem de acordo com sua função social, asseverando-se que preço pago pelo beneficiário considera os repasses que são feitos pelas Operadoras ao Estado, na forma de tributos e demais obrigações. Com isto, a Operadora já “internaliza” o custo social do Ressarcimento ao SUS quando da formação do preço (desoneração do Estado no atendimento do paciente) e no pagamento de tributos e demais obrigações ao Estado.
Por tudo isto, resta claro que a evolução do pensamento jurídico demonstra que o Ressarcimento ao SUS é um instituto que ainda deve ser melhor estudado, em especial, na atual fase da economia brasileira em que precisamos definir os rumos que serão adotados para o País.