Foi editada em 19/12/2023 a Resolução Normativa ANS 593 que “Dispõe sobre a notificação por inadimplência à pessoa natural contratante de plano privado de assistência à saúde e ao beneficiário que paga a mensalidade do plano coletivo diretamente à operadora”. A resolução, já editada no final de 2023, traz em seu texto novas regras para a notificação do beneficiário que paga a mensalidade de plano de saúde diretamente à Operadora.
Uma breve análise do contexto sociopolítico da edição da norma indica a forte influência do relatório do Projeto de Lei que altera o marco regulatório (Lei 9.656/98) e pressões da sociedade civil pela alteração de regras ligadas aos contratos coletivos. Quem acompanha as discussões ligadas à alteração do marco regulatório, especialmente nos últimos dois anos, tem acompanhado a difícil tarefa da ANS em manter seu protagonismo à frente da regulação setorial, e a forte intervenção de todos os atores sobre a regulação.
Feito esse parêntese, é preciso registrar já no início que a RN 593 peca em vários aspectos regulatórios e de produção normativa, utilizando até de conceitos indeterminados e de difícil interpretação, o que de imediato já justificaria a sua própria revogação. A afirmação parece drástica, mas fará sentido.
Pois bem, o Art. 1º da norma registra que a Resolução regulamenta a notificação por inadimplência à pessoa natural contratante de plano privado de assistência à saúde e ao beneficiário que paga a mensalidade do plano coletivo diretamente à operadora. A norma regulatória, portanto, fixa dois critérios: o beneficiário que é contratante, e quando for parte no contrato coletivo, se este promover o pagamento da mensalidade diretamente à operadora/administradora.
E no Art. 3º traz definições: note o registro dos incisos:
I – Pessoa natural contratante: pessoa natural que celebra o contrato diretamente com a operadora de planos privados de assistência à saúde, independentemente do tipo de contratação do plano, e é responsável pelo pagamento da mensalidade do plano de saúde, podendo ou não estar vinculada ao contrato como beneficiária, como, por exemplo, nos casos de planos individuais ou familiares e planos coletivos empresariais contratados por empresário individual;
II – Beneficiário que paga a mensalidade do plano coletivo diretamente à operadora: pessoa natural vinculada ao plano de saúde como beneficiária, titular ou dependente, que paga a mensalidade do plano coletivo diretamente à operadora, mesmo que haja uma pessoa jurídica contratante, como, por exemplo, nos casos de autogestões, administradoras de benefícios e ex-empregados em exercício do direito previsto nos arts. 30 e 31 da Lei nº 9.656, de 1998;
A leitura apenas da destinação da norma indica que os contratos coletivos empresariais, por exclusão, permaneceram inalterados apenas na hipótese em que o pagamento é realizado pela empresa (estipulante) efetivamente como pessoa jurídica (parece redundante, mas é de propósito).
Os beneficiários em contratos coletivos por adesão, empresários individuais, os demitidos e aposentados, ou mesmo aqueles que eventualmente comprovem que os pagamentos eram feitos diretamente pelo beneficiário (o que é uma possibilidade na medida em que a norma regulatória é extremamente aberta e trata da definição com o termo “por exemplo”, o que é abominável do ponto de vista da produção normativa).
Com isto, note que não apenas o Art. 23 da RN 557 foi alterado, mas as regras gerais para as administradoras na RN 515, especialmente, porque além do cancelamento é necessário que o estipulante do contrato anua com o mesmo, o que torna tudo ainda mais confuso.
Portanto, em um primeiro giro, fica claro que a RN 593 se aplica a todos os contratos, inclusive os coletivos (sob qualquer modalidade), considerando as colocações anteriormente indicadas, devendo ser observado o Art. 4º tanto para o cancelamento quanto para a suspensão do contrato (que pela norma tem o mesmo prazo).
Esta questão é extremamente relevante porque não há menção expressa nas demais normas que foram afetadas, nem mesmo considerações sobre a profunda alteração na dinâmica da atividade das administradoras de planos de saúde. E este ponto é extremamente relevante, porque a alteração promovida possui tamanha relevância que implicaria na adoção prévia de Análise de Impacto Regulatório (AIR), conforme termos do Art. 6º da Lei 13.848/19 (Lei das agências).
E isto porque, a regra de mercado, praticada na quase integralidade dos contratos coletivos, implica em suspensões por inadimplência, e ainda, cancelamentos com 30 dias de inadimplência, e a norma regulatória altera completamente a dinâmica dos contratos, fixando regras equivalentes à prevista no Art. 13 da Lei 9.656/98. Portanto, ainda que o grupo de trabalho que sugeriu a edição da norma tenha feito considerações, a falta do AIR implica em tacitamente concluir que isto não foi medido pela ANS.
Para além disso, faltaram considerações sobre a anterioridade, ou seja, sobre os contratos já vigentes em que a regra contratual vem sendo respeitada. Na prática, a nova resolução se aplica a todos os contratos, inclusive os vigentes, o que do ponto de vista legal, fere o princípio da anterioridade, e neste caso devemos recordar que a jurisprudência do STF já definiu a anterioridade como fato relevante para a Saúde Suplementar, bastando que se revise o julgamento da ADI 1931, proposta ainda quando da edição da Lei 9.656/98 e confirmada no julgamento de 2018, em que ficou decidido que os contratos anteriores à Lei permaneceram vigendo.
Adicione-se que os poderes regulatórios da ANS emanam do Art. 174 da CRFB/88, mas não são ilimitados, ao contrário, é próprio da relação das agências o seu dinamismo e a realização de análises técnicas, pautadas por estudos claros e bem fundamentados, o que sinceramente, não parece ter ocorrido no caso da edição desta norma.
Como prática, a ANS edita entendimentos da DIFIS ou ainda emite instruções sobre a norma, no entanto, o volume de problemas trazidos pela nova norma indica que a sua revogação antes da vigência prevista para 01/4/2024 é o caminho mais prudente a ser adotado, iniciando-se o processo de AIR e audiências públicas conforme o previsto na Lei, o que asseguraria melhores práticas regulatórias e segurança jurídica para operadoras e beneficiários.
Enquanto isto não se resolve, recomendamos que as Operadoras procedam com a produção de aditivos aos contratos coletivos empresariais registrando os dados do pagador do contrato, a fim de incluir o contrato na regra da RN 593/23, ou afastá-lo (registrando a responsabilidade pela Pessoa Jurídica). Da mesma forma, um aditivo deve considerar que, na hipótese do estipulante não autorizar o cancelamento do contrato por inadimplência, a cobrança será dirigida ao estipulante (nos casos de demitidos e aposentados, por exemplo).
Nada é muito simples sobre essa questão, somente outros desdobramentos e o apoio de outros colegas com suas análises valiosas somarão entendimentos sobre a nova norma e o comportamento do mercado.
De mais a mais, feliz 2024.