A iatrogenia como excludente de ilicitude

Por Gabriela Caminha e Debora Wyatt

A lesão iatrogênica pode ser definida como o efeito adverso decorrente da propedêutica médica, ou seja, trata-se da ocorrência lesiva eventualmente necessária para que se alcance o tratamento adequado.

Pela lesão iatrogênica ocasionar, de certa forma, algum prejuízo para o paciente – embora seja necessário para possibilitar um benefício maior – muitas vezes aqueles que são leigos confundem a lesão iatrogênica com a conduta culposa do profissional de saúde, entendendo que a atuação foi negligente, imprudente ou imperita, o que na maioria das vezes não é verdade.

São exemplos clássicos de lesão iatrogênica o efeito colateral de um medicamento necessário para tratar uma patologia, a queda de cabelo em razão da quimioterapia necessária para atacar um câncer, a cicatriz que marca o corpo do paciente em razão de uma cirurgia, uma queloide que não se poderia prever, a lesão no canal auditivo para a remoção de um inseto que estava causando infecção no ouvido, a alergia que um medicamento pode causar ao paciente sem que nunca tenha se manifestado anteriormente, a fratura de um dente ao realizar uma exodontia, a parestesia temporária ao realizar um procedimento cirúrgico ou anestésico, dentre outros.

Esse tipo de lesão pode variar em gravidade, desde efeitos colaterais menores de um medicamento até complicações graves decorrentes de procedimentos cirúrgicos. O importante é compreender que a lesão iatrogênica não pode considerada um erro médico, mas deve ser entendida como uma consequência possível e, em alguns casos, inevitável do tratamento médico.

A diferenciação entre lesão iatrogênica e erro de conduta é crucial para compreender a responsabilidade legal dos profissionais de saúde, vez que a lesão iatrogênica constitui uma excludente de ilicitude por não implicar em falha por parte do profissional de saúde, pois ocorre apesar da adesão aos padrões de cuidado, ao contrário do “erro na prestação dos serviços de saúde” que resulta de uma ação ou omissão que desvia dos padrões estabelecidos de cuidado, seja por negligência, imprudência ou imperícia, causando um dano ao paciente punível por ser culposo.

Entende-se que a lesão iatrogênica constitui uma excludente de ilicitude pois embora estejam presentes a conduta voluntária, o nexo causal e o dano injusto, que são os elementos que constituem a responsabilidade civil, a conduta lesiva do agente, por previsão legal, não é observada como ilícito e, consequentemente, não acarreta o  dever  de  indenizar, vez que rompe o nexo de causalidade diante da ausência de culpa.

A excludente de ilicitude nos casos de lesão iatrogênica é fundamental para de discutir a responsabilidade do profissional de saúde, vez que estabelece limites entre a culpa e as consequências inevitáveis de determinados tratamentos de saúde, sendo essencial para garantir que os profissionais de saúde possam exercer suas funções sem o medo constante de repercussões legais, desde que sigam as práticas e protocolos estabelecidos.

A relevância deste tema estende-se além do âmbito legal, impactando diretamente a prática profissional, devendo os profissionais de saúde estarem cientes dos limites legais de sua atuação e da importância de seguir rigorosamente os protocolos médicos para evitar a responsabilização por um dano que o paciente venha sofrer, além de ter implicações significativas para a relação entre médicos e pacientes, influenciando a confiança mútua e a percepção pública da prática médica.

A adesão às boas práticas e protocolos de saúde é fundamental para garantir a qualidade e a segurança do atendimento médico, vez que são desenvolvidos com base em evidências científicas e experiências clínicas para estabelecer padrões de cuidado que minimizem os riscos para os pacientes e mantenham a consistência no tratamento reforçando a confiança dos pacientes de que estão recebendo o melhor cuidado possível.

Sem dúvidas, a relação entre boas práticas e a prevenção de erros médicos é direta e significativa, vez que ao seguir protocolos estabelecidos, os profissionais de saúde podem evitar muitos dos erros comuns que ocorrem devido a omissões, desvios de procedimento ou falhas de comunicação. Por exemplo, protocolos de cirurgia segura, como a verificação pré-operatória e a marcação do local da cirurgia, são cruciais para prevenir erros cirúrgicos. Da mesma forma, diretrizes para a prescrição e administração de medicamentos ajudam a evitar erros de medicação, que são uma das principais causas de eventos adversos em ambientes de saúde. Portanto, a adesão rigorosa às boas práticas e protocolos de saúde é um dos pilares fundamentais para a prevenção de erros e para a promoção de um atendimento seguro e eficaz aos pacientes.

Neste sentido os registros médicos nos prontuários desempenham um papel crucial na comprovação da adequação do tratamento, vez que fornecem um registro detalhado de todas as interações médicas, incluindo diagnósticos, tratamentos administrados, respostas dos pacientes e qualquer outra observação relevante, possibilitando a continuidade do cuidado diante do histórico completo de suas condições e tratamentos. Além disso, em caso de acionamento judicial, os prontuários médicos servem como evidência crucial para demonstrar que o tratamento foi realizado de acordo com os padrões aceitos de prática médica e que as decisões foram tomadas com base nas melhores informações disponíveis no momento.

Não menos importante, destacar, conforme já abordado no texto sobre o dever de informação, publicado em 25/01/2024, a imprescindibilidade do correto esclarecimento do paciente sobre todos os possíveis riscos que o procedimento/tratamento possam ocasionar, preferencialmente – para não dizer obrigatoriamente – formalizado através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para que o paciente tenha consciência das possibilidades de intercorrências e lesões iatrogênicas que possam ser ocasionadas.

Conforme também abordado no texto prévio pertinente, o dever de informação é uma obrigação autônoma e isto significa que ainda que não tenha ocorrido nenhum dano – o que não é o caso da lesão iatrogênica – e o procedimento/tratamento tenha sido correto e realizado, caso o profissional não tenha meios de comprovar que o paciente estava esclarecido sobre todas as informações necessárias para escolher se submeter ao tratamento, o profissional poderá ser responsabilizado e condenado a indenizar o paciente que não foi previamente informado.

Esta questão da comprovação do correto esclarecimento torna-se ainda mais crucial quando ocorre alguma lesão iatrogênica, pois além de demonstrar o correto cumprimento do protocolo para a realização do tratamento que inclui a decisão compartilhada entre o profissional e o paciente pela conduta a ser adota, subentende-se que o paciente foi esclarecido sobre as possibilidades e suas variáveis, tendo ciência que referida lesão era uma possibilidade, afasta a possibilidade de o paciente alegar uma negligencia, ainda que não do procedimento, mas na conduta pré-procedimento.

A excludente de ilicitude advinda da lesão iatrogênica é um tema vasto e complexo, com implicações profundas para a prática médica, a ética profissional e a legislação, sendo importantíssimo que o profissional de saúde trabalhe de forma preventiva para que não possa ser responsabilizado por algum dano que realmente ocorreu, mas que não deveria lhe ser atribuída a responsabilidade por advir de riscos que são inerentes ao tratamento médico, mas acabam lhe sendo imputáveis pelo não cumprimento dos deveres anexos, tais como seguimento de protocolos rígidos, cientificação do paciente sobre os possíveis riscos e registro correto de suas condutas de forma a comprovar que suas condutas foram realizadas de acordo com o previsto em literatura e que as decisões foram tomadas com base nas melhores informações disponíveis no momento.

Bibliografia:

Iatrogenia: modalidade culposa ou excludente de ilicitude. (2008). Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo103, 675-683. https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67824

Carvalho, José Carlos Maldonado – Iatrogenia e Erro Médico sob o enfoque da Responsabilidade Civil – 2. Ed rev, atual. E ampl. – Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007

O dever de informação como principal fator da responsabilização profissional. https://brunomarcelosadvocacia.com.br/o-dever-de-informacao-como-principal-fator-da-responsabilizacao-profissional

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