Os reajustes e a transmissão da informação

Por Vinicius Machado

O direito à saúde, consectário do princípio da dignidade da pessoa humana, é um direito universal previsto em nossa Carta Magna, nos arts. 6º e 196º, devendo o Estado fornecer seu acesso para todos. Todavia, como se sabe, a Constituição permitiu a participação da iniciativa privada na prestação de serviços de saúde (art. 199º), e, por isso, promulgou a Lei 9.656/98 para regulamentar o mercado dos planos privados de assistência à saúde.  

Hoje no Brasil, os planos de saúde cuidam da cobertura de mais de 50 milhões de indivíduos, sendo que a maioria dos contratos são coletivos empresarias, com pouco mais de 35 milhões. A Resolução Normativa nº 557[1], editada pela ANS, define os três tipos de contratos de plano de saúde, podendo ser eles: individuais/familiares, coletivos empresariais ou coletivos por adesão.

O contrato individual/familiar é aquele que oferece cobertura de serviços de saúde de livre adesão para pessoas naturais, com ou sem grupo familiar[2]. Já os contratos coletivos empresariais são aqueles que oferecem prestação de serviços de saúde para população delimitada e vinculada à pessoa jurídica por relação empregatícia ou estatutária[3]. Por fim, temos o contrato coletivo por adesão que são aqueles que fornecem prestação de serviços de saúde à população que mantenha vínculo com pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial[4].

Entre os alvos da regulação dos contratos na saúde suplementar, estão as regras para aplicação de reajustes nas mensalidades, que costumam gerar diversas controvérsias tanto no âmbito administrativo quanto no judiciário. Segundo definição da ANS, reajuste é a atualização da mensalidade[5] baseada em determinados fatores como variação dos custos dos procedimentos médico-hospitalares, a idade do beneficiário e o aumento inesperado do fornecimento de serviços quando comparado com a receita financeira percebida pela operadora no período analisado. O reajuste é nada mais que um instrumento que tem como fundamento o princípio do equilíbrio econômico contratual e busca conservar a existência do contrato[6].

Os três tipos de reajuste no valor da contraprestação mencionados acima são também denominados de: a) reajuste por variação de custos; b) reajuste por variação de faixa etária; e c) reajuste por sinistralidade. Iremos realizar um breve apanhado sobre a aplicabilidade desses reajustes nos contratos de planos de saúde.

O reajuste por variação de custos é regulado pela Resolução Normativa nº 565 da ANS. Para os contratos individuais/familiares realizados depois da vigência da Lei 9.656/98[7], a aplicação de reajuste por variação de custos depende de autorização prévia da agência. A ANS inclusive estabelece um índice de reajuste máximo que pode ser aplicado, sendo calculado anualmente.

Com a autorização pelo agente regulador, o reajuste poderá ser aplicado a partir do mês de aniversário do contrato[8]. Nessas situações, devido à exigência de aprovação prévia e à definição de um limite pela ANS para a aplicação do reajuste, possíveis abusos ou falta de transparência nos índices estabelecidos são menos contestados judicialmente em comparação aos reajustes aplicados em contratos coletivos.

Nos contratos coletivos, a regra geral é que o reajuste seja negociado entre a operadora e a pessoa jurídica contratante, de acordo com as regras estabelecidas no contrato, havendo uma diferenciação para os contratos que tiverem menos de 30 vidas[9]. Nesse último caso, ocorre o que se denomina de “agrupamento de contratos”, pelo qual as operadoras reúnem em um grupo único todos os seus contratos coletivos com menos de 30 beneficiários para aplicação de um mesmo percentual de reajuste[10].

Ainda sobre os contratos coletivos, cabe destacar que nesses casos há o dever da operadora informar à ANS os percentuais de reajuste aplicados, assim como há previsão de que os percentuais propostos sejam fundamentados e os cálculos disponibilizados para conferência, mas não há necessidade de autorização prévia da ANS para sua aplicação.

Noutro giro, o reajuste por faixa etária é a variação da mensalidade devido à alteração da idade do beneficiário e somente pode ser aplicado nas faixas autorizadas, previstas no art. 2º, da Resolução Normativa nº 563, da ANS. O Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema repetitivo 952 considerou válido o reajuste por faixa etária nos contratos individuais/familiares desde que sejam preenchidos três critérios, à saber: a) haja previsão contratual; b) sejam observadas as normas expedidas pelos órgãos governamentais reguladores; e c) não sejam aplicados percentuais desarrazoados ou aleatórios que, concretamente e sem base atuarial idônea, onerem excessivamente o consumidor ou discriminem o idoso.

Posteriormente, mais uma tese foi firmada envolvendo a questão do reajuste por faixa etária no julgamento do Tema repetitivo 1.016 pelo Superior Tribunal de Justiça. Neste julgado, restou definido como válido a aplicação de reajuste por faixa etária também nos planos coletivos, com base nos mesmos critérios expostos no tema 952[11].

Além desses dois, também existe a possibilidade de aplicação do reajuste por sinistralidade, conforme previsto no inciso II, do art. 27, da Resolução nº 565. Ele terá por base a proporção entre as despesas assistenciais e as receitas diretas do plano, apuradas no período de doze meses consecutivos, anteriores à data-base de aniversário considerada como o mês de assinatura do contrato.

Para além da lei específica dos planos de saúde, a relação entre beneficiário e operadora de plano de saúde também se encontra sob a proteção do Código de Defesa do Consumidor (CDC), algo definido tanto pelo art. 1º, da Lei 9.656/98[12] como por jurisprudência pacífica[13] do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que tratou do tema (Súmula 608). Dessa forma, as regras e princípios que regem as relações de consumo também são aplicáveis, como o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, inciso I, do CDC), o direito a informação adequada e clara sobre os produtos e serviços (art. 6º, inciso III, do CDC) e a vedação do fornecedor exigir vantagem manifestamente excessiva (art. 39, inciso V, do CDC).

Dessa forma, o cumprimento do dever de informação da operadora para o beneficiário no caso de esclarecimento sobre o reajuste aplicado é imperioso para que se construa uma boa relação entre o prestador de serviço e o consumidor. Nesse sentido, a relação de confiança entre ambas as partes fica fortalecida, e, ao fim, os litígios envolvendo a matéria são reduzidos, o que é positivo para todos.

A doutrina aponta que este dever compreende o fornecimento de uma informação qualificada e compreensível, gerando de maneira ampla um dever de esclarecimento, o que colabora para a escolha do consumidor no momento da aquisição do serviço ou produto. Todavia, nos contratos de adesão o dever de informar adquire outros contornos, pois os contratos são oferecidos na modalidade take it or leave it. Dessa forma, não há negociação relevante entre as partes, e, com isso, surge o problema da inserção de termos abusivos e/ou excessivamente vantajosos para fornecedor. 

Com relação às cláusulas abusivas, a legislação brasileira cuida desse problema satisfatoriamente, na medida em que o Código de Defesa do Consumidor, no art. 51, inciso IV, prevê que são nulas de pleno direitos as cláusulas contratuais que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”. Sendo assim, o consumidor ao perceber que assinou um contrato com cláusulas abusivas, pode recorrer ao judiciário para anulá-las.   

Ocorre que o contexto fático brasileiro é de sobrecarga do sistema judiciário[14]. Dessa forma, ter o judiciário como solução para controvérsias contratuais não é a forma mais eficiente de lidar com o problema, partindo de uma perspectiva econômica. Alternativas mais eficientes podem ser encontradas para solucionar a controvérsia sem que seja necessário movimentar a máquina judiciária, financiada pelo dinheiro público.

Para abordar essa questão, frequentemente, a iniciativa dos reguladores e dos decisores políticos é incentivar o fornecedor a disponibilizar informações adicionais nos contratos. Assim, os consumidores, de forma racional, poderiam adquirir todas as informações necessárias e, em caso de perceberem cláusulas abusivas ou excessivamente desvantajosas, não prosseguir com a assinatura do contrato.

Entretanto, estudos empíricos[15] demonstram que os consumidores não são racionais e raramente leem os termos dos contratos que assinam, e isto pode estar relacionado aos vieses e percepções equivocadas que os consumidores carregam consigo.

Na perspectiva de De Geest[16], a falta de leitura dos contratos de adesão pode resultar em determinados tipos de ineficiência, como desestimular o fornecedor a aprimorar a qualidade de seus produtos. Ele sugere que a legislação deve atuar no sentido de motivar o redator do contrato a elaborar termos eficientes, uma vez que esse redator possui as informações pertinentes sobre o produto. Nesse contexto, defende-se que o redator do contrato deve assumir o ônus de comprovar a eficácia dos termos redigidos. 

No caso da saúde suplementar, o marco regulatório da atuação dos planos de saúde (Lei 9.656/98), dispõe no art. 16º certas informações obrigatórias nos contratos de plano de saúde, como as condições de admissão (inciso I), os períodos de carência (inciso III), os eventos cobertos (inciso VI) e os critérios de reajuste e revisão das contraprestações pecuniárias (inciso XI). Além disso, algumas resoluções da ANS tratam do fornecimento das informações às pessoas jurídicas contratantes e aos beneficiários, como a resolução nº 509[17] e 565[18].

Com relação ao reajuste, os arts. 14 a 17 da resolução nº 509 cuidam da obrigação da operadora de prestar informações para a pessoa jurídica contratante do plano coletivo acerca dos itens considerados para o cálculo do reajuste conforme cláusula contratual ou estabelecido em negociação. O extrato deve conter o critério técnico adotado e a demonstração da memória de cálculo realizada para a definição do percentual de reajuste.

Segundo a norma, após a aplicação do reajuste, os beneficiários poderão solicitar formalmente o extrato pormenorizado para operadora, que possui o prazo de 10 dias para seu fornecimento. Também nesse sentido, a resolução nº 565, no art. 32, prevê que constará nos boletos e faturas de cobrança da primeira mensalidade reajustada a data e o percentual do reajuste aplicado.

Nota-se a existência de um sólido arcabouço jurídico e regulatório que estipula a necessidade de fornecimento de informações relativas ao cálculo do reajuste. Em resumo, é imperativo que a aplicação do reajuste esteja devidamente estabelecida no contrato entre as partes. No caso de contratos individuais ou familiares, a aplicação do reajuste está sujeita à prévia autorização do órgão regulador, com limitação ao percentual estipulado pela agência. Para planos coletivos, a definição do reajuste deve ser fruto de negociação entre a pessoa jurídica contratante e a operadora de plano de saúde, com uma distinção para planos com até 29 vidas, nos quais ocorre o chamado “agrupamento de contratos”.

No que tange à comunicação do reajuste nos contratos coletivos, é compulsório informar à ANS (sem necessidade de autorização) os percentuais aplicados, assim como à pessoa jurídica contratante, antes da implementação do reajuste, fornecendo um extrato detalhado dos valores. No caso do beneficiário, a informação é devida após a aplicação do reajuste, sendo possível solicitá-la à operadora, e também deve ser encaminhada junto ao boleto de pagamento do mês em que houve o reajuste.

No entanto, apesar de todas as obrigações legais e regulatórias, ainda nos deparamos com um considerável número de reclamações dirigidas à ANS, muitas das quais desembocam no âmbito judiciário, como previamente observado. Nesse contexto, surge a necessidade de indagarmos se a transmissão da informação está ocorrendo de maneira verdadeiramente transparente e clara.

Uma comunicação eficaz no momento da contratação, bem como ao longo da vigência do contrato, dada a natureza contínua dos planos de saúde, pode contribuir significativamente para a redução de dúvidas e disputas sobre o tema. Esse aprimoramento na comunicação poderia fortalecer a relação entre beneficiários e pessoas jurídicas contratantes junto às operadoras de planos de saúde, apresentando-se como uma possível via para mitigar a crescente demanda por resoluções judiciais.


[1] Resolução normativa da ANS que dispõe sobre a classificação e características dos planos privados de assistência à saúde e regulamenta a sua contratação; dispõe sobre a contratação de plano privado de assistência à saúde coletivo empresarial por empresário individual; e dispõe sobre os instrumentos de orientação para contratação de planos privados de assistência à saúde.

[2] Art. 3º, da resolução 557 da ANS.

[3] Art. 5º, da resolução 557 da ANS.

[4] Para maior detalhamento ver o art. 15º, da resolução 557. Podemos dizer, em regra, que temos como pessoas jurídicas legitimadas a firmar contrato coletivo por adesão os conselhos profissionais e entidades de classe, sindicatos, associações profissionais legalmente constituídas, cooperativas que congreguem membros de categorias ou classes de profissões regulamentadas, caixas de assistência e fundações de direito privado que se enquadrem nas disposições desta resolução e entidades previstas na Lei n˚ 7.395, de 31 de outubro de 1985, e na Lei n˚ 7.398, de 4 de novembro de 1985.

[5] Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Reajuste/Variação de mensalidade. Disponível em: https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/consumidor/reajuste-variacao-de-mensalidade#:~:text=A%20ANS%20%C3%A9%20a%20entidade,de%20faixa%20et%C3%A1ria%20do%20benefici%C3%A1rio. Acesso em: 23/12/2023

[6] GOMES, Josiane Araújo. Contratos de Planos de Saúde. 3. ed. rev. ampl. atual. Leme, SP. Editora: Mizuno. 2023. P.351

[7] Esse tema foi objeto de discussão na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.931. O plenário do Supremo Tribunal Federal julgou parcialmente procedente a ação para declarar inconstitucional os arts. 10, §2 e 35-E, da Lei 9.656/98 que previam a aplicação das novas normas nos contratos celebrados antes da vigência da lei. Dessa forma, ficou decidido que os contratos firmados antes da lei de 1998 não podem ser atingidos pela nova regulamentação dos planos de saúde, pois isso violaria o direito adquirido e o ato jurídico perfeito.

[8] Art. 9º, caput, da Resolução nº 565, da ANS

[9] Resolução nº 509, Anexo I, da ANS.

[10] “Art. 37. É obrigatório às operadoras de planos privados de assistência à saúde formar um agrupamento com todos os seus contratos coletivos com menos de trinta beneficiários para o cálculo do percentual de reajuste que será aplicado a esse agrupamento.” (Resolução nº 565, da ANS)

[11] Além da ratificação dos critérios, o Tribunal definiu no Tema 1.016 que a melhor interpretação do enunciado normativo do art. 3°, II, da Resolução n. 63/2003, da ANS, é aquela que observa o sentido matemático da expressão ‘variação acumulada’, referente ao aumento real de preço verificado em cada intervalo, devendo-se aplicar, para sua apuração, a respectiva fórmula matemática, estando incorreta a simples soma aritmética de percentuais de reajuste ou o cálculo de média dos percentuais aplicados em todas as faixas etárias.

[12] “Art. 1º Submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade e, simultaneamente, das disposições da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor) […]”

[13] A súmula 608 do Superior Tribunal de Justiça, já sedimentou que deve ser aplicado o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão.

[14] Segundo relatório do Conselho Nacional de Justiça, tramitam no Judiciário brasileiro 81,4 milhões de processo. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/com-315-milhoes-de-casos-novos-poder-judiciario-registra-recorde-em-2022/#:~:text=Tramitaram%20no%20Judici%C3%A1rio%20brasileiro%2081,de%20a%C3%A7%C3%B5es%20judiciais%20em%20tramita%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 25/12/2023

[15] BAKOS, Yannis; MAROTTA-WURGLER, Florencia; TROSSEN, David R. Does Anyone Read the Fine Print? Consumer Attention to Standard-Form Contracts. Journal of Legal Studies, Chicago, v. 43, n. 1, p. 31-35, jan. 2014. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/10.1086/674424]. DOI: https://doi.org/10.1086/674424 Acesso em: 21/12/2023

[16] DE GEEST, Gerrit. Signing Without Reading. In: MARCIANO, Alain; RAMELLO, Giovanni Battista (Eds.). Encyclopedia of Law and Economics: Basic Areas of Law. Springer, Forthcoming. Washington University in St. Louis Legal Studies Research Paper No. 16-09-01, 2016. SSRN: https://ssrn.com/abstract=2834314

[17] Dispõe sobre a transparência das informações no âmbito da saúde suplementar

[18] Dispõe sobre os critérios para aplicação de reajuste das contraprestações pecuniárias

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