Da responsabilidade civil aos incidentes de saúde: como o CNJ adapta sua linguagem para promover melhores práticas nos serviços de saúde

por Gabriela Caminha e Débora Wyatt

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), substituiu a nomenclatura “erro médico” pelo termo “serviços de saúde” nas Tabelas Processuais Unificadas (TPU) do Poder Judiciário, que servem para classificar os assuntos das causas que tramitam na justiça. Assim, fala-se agora em danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde.

O Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) solicitou a substituição da terminologia “erro médico”, argumentando que sua utilização era tendenciosa contra a classe médica, criando uma presunção de preconceito e parcialidade. Foi observado que essa categorização simplista levava à percepção, tanto por parte da comunidade quanto da imprensa, de que questões relacionadas à gestão ou falhas no atendimento por profissionais de outras áreas dentro de um hospital eram automaticamente atribuídas à responsabilidade dos médicos.

A alteração da terminologia foi viabilizada com base no artigo 99 do Regimento Interno Nº 67, datado de 03/03/2009, do CNJ. Este artigo estabelece que, em situações de risco iminente de prejuízo ou de grave repercussão, o Plenário do CNJ, o Presidente ou o Relator podem, dentro de sua competência e de forma fundamentada, adotar medidas preventivas sem a necessidade de prévia manifestação da autoridade, desde que observados os limites legais.

Neste contexto, a adaptação promovida pelo CNJ busca promover transparência e estimular melhores práticas nos serviços de saúde, redistribuindo a responsabilidade por danos ocorridos em toda a cadeia de serviços, e não exclusivamente sobre o profissional médico, que muitas vezes não participa ou tem conhecimento sobre o ocorrido.

A mudança vem sendo muito comemorada pela comunidade médica vez que, tradicionalmente, na categoria modificada “erro médico” estavam incluídos também processos que não discutiam eventual falha técnica do médico (erros essencialmente médicos), mas de algum outro profissional de saúde (erros paramédicos) ou até mesmo aquelas ações apresentadas contra hospitais, clínicas ou laboratórios (erros extra-médicos) por eventuais acidentes ou demais problemas não relacionados ao atuar do médico especificamente, conforme já abordado em nosso artigo “Responsabilidade Civil Hospitalar” publicado em 01/02/2024.

Essa generalização, ou melhor, simplificação da categoria acabava trazendo uma falsa ideia para a população de que qualquer problema ocorrido na prestação de serviços de saúde seria de responsabilidade do médico, quando muitas vezes não há qualquer ingerência do referido profissional no ocorrido, trazendo prejuízos reputacionais à categoria, razão pela qual não apenas o Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC), mas diversas outras sociedades médicas há muito questionavam a classificação geral das intercorrências ocorrer como “erro médico’.

É natural que ao advir algum problema relacionado à prestação de serviço em saúde, aqueles que são mais leigos tendam a olhar apenas para o procedimento final, que normalmente é realizado pelo médico, quando é essencial que se percorra todo o caminho trilhado pelo paciente, desde o momento em que foi admitido na unidade até a infeliz intercorrência para entender o que efetivamente ocorreu e quem foi o real agente daquela eventual falha.

Tecnicamente é indiscutível que o profissional só erra pessoalmente por negligência, imprudência e imperícia e que existem diversas outras circunstâncias em que a intercorrência é oriunda da equipe de saúde, que é multidisciplinar, ou até mesmo das questões estritamente de hotelaria que muitas vezes nem chega ao conhecimento da equipe médica. Sendo assim, não restam dúvidas de que a alteração é positiva, não apenas para os médicos, mas para também a população em geral que passa a obter mais clareza sobre a dinâmica dos serviços de saúde, importantíssimo diante do exponencial aumento da judicialização relacionada à responsabilidade civil por incidentes de saúde.

 No entanto, surgem questionamentos sobre a eficácia da mudança na nomenclatura em relação à comunidade leiga e à impressa, que fatalmente permanecerá, ainda que por um período de adaptação, utilizando o termo “erro médico”, mesmo diante da alteração. De toda forma, sob um ponto de vista técnico, a substituição da terminologia por “serviços de saúde” oferece ao judiciário uma maior segurança jurídica na classificação e enquadramento, simplificando o trabalho do corpo jurídico ao lidar com o tema e permitindo análises jurismetricas mais precisas por parte dos Tribunais e instituições, possibilitando  análises descritivas, diagnósticas e preditivas mais profundas que trazem maior assertividade na identificação de tendencias e padrões, possibilitando a criação de leis e políticas públicas cada vez mais relevantes.

DESPACHO CNJ, Pedido de Providências n. 0004278-68.2023.2.00.0000, https://www.cnj.jus.br/sei/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&codigo_verificador=1748680&codigo_crc=F5221B8F&hash_download=d94f3c301716781a09cded292862f5d2223f7fa69129afc68785cd2515ef385b06bab14aa186921ed7092988c2375a78a29cab54be7f87c900b1298a868db1f5&visualizacao=1&id_orgao_acesso_externo=0

Regimento Interno Nº 67 de 03/03/2009,  https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/124

Notícias CFM https://portal.cfm.org.br/noticias/justica-elimina-categoria-erro-medico-do-sistema-de-classificacao-de-processos-a-pedido-de-entidades-medicas/

Artigo “Responsabilidade Civil Hospitalar” publicado em 01/02/2024.  https://brunomarcelosadvocacia.com.br/responsabilidade-civil-hospitalar/

Kfouri Neto, Miguel – Responsabilidade civil dos hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor -3. Ed. Ver, atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018 – Pág. 46 a 53

Jurimetria: Compreensão e importância no contexto do Direito Brasileiro, https://www.migalhas.com.br/depeso/391599/compreensao-e-importancia-no-contexto-do-direito-brasileiro

Jurimetria: o que é e como fica a advocacia depois dessa revolução,  https://www.projuris.com.br/blog/jurimetria/#:~:text=Segundo%20a%20ABJ%20(Associa%C3%A7%C3%A3o%20Brasileira,fazer%20parte%20do%20mundo%20jur%C3%ADdico.

Jurimetria: O que é e quais seus pilares https://blog.neoway.com.br/o-que-e-jurimetria/#:~:text=A%20jurimetria%20%C3%A9%20baseada%20em,decis%C3%A3o%20judicial%3B%20e%20instru%C3%A7%C3%A3o%20probat%C3%B3ria.

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