Impactos da judicialização na sustentabilidade do setor de saúde

Por Gabriela Caminha e Débora Wyatt

O cenário da Saúde Suplementar enfrenta uma crise devido à sobrecarga causada pela judicialização em massa, atribuída por inúmeros fatores. Podemos destacar como fator crítico para judicialização o livre arbítrio do julgador, afetado por decisões que podem variar consideravelmente de caso para caso; a ausência de segurança jurídica, gerando instabilidade na relação jurídica entre operadoras e o consumidor; o baixo custo de acesso à justiça, que contribui para sobrecarga dos tribunais; a cultura das ações individuais em detrimento das coletiva, fragmentando as demandas, tornando o sistema mais suscetível a inconsistências e dificultando a resolução eficiente de questões comuns, mostrando-se ineficientes na resolução dos conflitos, contribuindo para a persistência dos litígios e para a insatisfação das partes envolvidas.


A sensibilidade do tema gera empatia do julgador, que acaba se identificando com aquela situação, lembrando de suas experiencias e de aflições de saúde que já podem ter passado pessoalmente ou com algum ente querido e acaba entendendo que esta pode ser a única chance de o beneficiário ter sua saúde assegurada ou a sua vida preservada e acaba concedendo direitos que os beneficiários não possui.
Somada a este livre-arbítrio do judiciário, principalmente, no que tange as instâncias superiores, que não raro acabam ocasionando uma regulamentação através da judicialização, indo contra as previsões regulatórias e concedendo decisões que acabam virando súmulas que preveem o oposto do que a Agência determinou para o setor, gerando uma insegurança jurídica sobre a existência ou não daquele direito.


Indubitavelmente, embora todas as questões enumeradas contribuam, em conjunto, para a contrariedades que assola o setor da Saúde Suplementar, a ausência de segurança jurídica é o mais grave. Isto se deve ao fato de que vivemos em um país continental, onde os magistrados possuem culturas e experiencias diferentes que acarretam distintas interpretações da norma, embora a ela seja única e de aplicação nacional, gerando decisões diferentes dependendo da Comarca em que forem ajuizadas e muitas vezes do magistrado que for julgar a causa.


Apesar de muitas pessoas considerarem que esta insegurança jurídica prejudica a Operadora, mas favorece o beneficiário, a realidade não é bem esta, vez que muitas vezes eles se Em muitos casos, os beneficiários sentem-se injustiçados pela falta de equidade ao ajuizar uma mesma demanda em que um colega obteve êxito anteriormente e, surpreendentemente, o seu caso é julgado improcedente, uma vez que cada julgador interpretou a mesma norma de forma distinta e, consequentemente, compreendeu o caso concreto com fatores muito semelhantes de forma oposta.


Outra questão considerável e que está visceralmente ligada ao livre-arbítrio do judiciário e a ausência de segurança jurídica causada pelo desrespeito ao sistema de precedentes. O legislador ao promulgar o Código de Processo Civil de 2015, privilegiou a uniformização da jurisprudência para que os magistrados dos Tribunais Estaduais não precisassem avaliar teses que já tenham sido firmadas pelos Tribunais hierarquicamente superiores, analisando-as e aplicando no caso concreto ao julgá-los sem precisar interpretá-las, o que afastaria o livre-arbítrio do julgador e traria uma maior uniformidade nos julgamentos de causas semelhantes.


Se o judiciário pudesse aplicar a tese julgada pelo tribunal hierarquicamente superior, como o Código de Processo Civil prevê, a judicialização seria muito menor, porque o advogado ao ser procurado para ajuizar uma ação, conseguiria analisar o caso concreto e o direito supostamente violado, realizado um juízo de probabilidade com base nas teses firmadas, verificando aquele direito do cliente seria ou não reconhecido pelo judiciário, sem se aventurar a ter o caso julgado por um magistrado que pode se sensibilizar com a demanda e julgá-la procedente.


Contudo, além dos magistrados não julgarem as causas necessariamente respeitando os precedentes já firmados, se utilizarem de suas vivencias e experiencias culturais que trazem uma diversidade de julgamento ainda há aqueles julgadores que possuem posicionamento ideológico neoconstitucionalista, trazendo um diálogo entre as fontes e aqueles que são positivistas e irão aplicar a norma de forma literal e essa divergência ocorrem, inclusive, nos Tribunais Superiores trazendo diversidade de entendimento entre as Turmas, o que corrobora para a insegurança jurídica.


Nesta mesma esteira, o fato de o acesso à justiça possuir um baixo custo somado à ausência de uniformização das decisões, faz com que os beneficiários se sintam encorajados a propor ações aventureiras, muitas vezes sem efetivamente se sentir lesado, pois teve notícias de que aquela questão pode ser passível de indenização e ajuízam o processo para tentar a sorte, pois há pouco a se perder e muito a se ganhar, sem importar se o direito é realmente bom ou ruim, pois os riscos são mínimos.


Neste contexto de “loteria processual”, sazonalmente aparecem ações da moda onde advogados buscam beneficiários que se encaixem em uma situação específica a qual possuem uma tese que estão trabalhando para emplacar e ajuízam em massa ações individuais, sem se preocupar em resolver um direito violado daquele cliente que tem o incomodado, mas sim pensando na oportunidade com foco na parte financeira, aproveitando uma onda que surgiu, desvirtuando o judiciário.


Se essas ações da “moda” fossem ajuizadas de forma coletiva, buscando genuinamente resolver um problema de uma massa da população que possui um mesmo direito que teria sido violado ao invés de ações individuais o problema seria bem menor. O Brasil tem uma cultura das ações individuais que faz com que cada beneficiário busque o seu direito, embora existam órgãos públicos e associações privadas que poderiam pleitear esse mesmo direito para um grupo de beneficiários que estejam na mesma situação.


Um exemplo claro desse ajuizamento individuais por pleitos coletivos são as ações que questionam os reajustes dos planos coletivos por adesão, vez que a carteira é toda reajustada com o mesmo índice não havendo razão para se ajuizar individualmente uma causa que visa discutir um critério objetivo em comum à todos os beneficiários aderentes à aquele fundo mutual e que, provavelmente, terão sentenças distintas fazendo com que aqueles que não tiveram a revisão do reajuste da forma do colega que a conseguiu se sinta injustiçados, por ter um direito, que foi reconhecido em situação idêntica, violado.


Ocorre que, muitas vezes o objetivo do beneficiário no ajuizamento não é apenas alcançar um direito que entende possui ou resolver um que lhe aflige, mas sim indenizações e até mesmo uma espécie de vingança contra a Operadora diante das multas pesadas das agências reguladoras e difamação da Operadora em sites de reclamação, razão pela qual quando as vias extrajudiciais são utilizadas elas se somam ao acionamento do judiciário ao invés de o precederem ou substituírem.


Essa conjuntura do ativismo judicial complica muito a Saúde Suplementar, vez que traz muitas incertezas, o que é incompatível com o cálculo do risco que é a espinha dorsal da atividade devido a lógica do mutualismo, onde se tem que várias pessoas unidas com o mesmo proposito para formar um fundo capaz de assegurar a cobertura caso alguém necessite dentre aqueles riscos assegurados e calculados.


O cálculo da contribuição para o fundo mutual é feito analisando o que uma pessoa naquela faixa etária normalmente demanda por ano, baseada nas coberturas asseguradas. Quando o judiciário concede coberturas que extrapolem aquele risco calculado e assegurado causa um desequilíbrio no fundo o tornando menos viável e demandando que o valor assegurado também seja excedido para suportar as incertezas.


As operadoras estão sempre lidando com riscos calculados, buscando transformar as incertezas em risco para gerar probabilidade para o negócio, vez que a quantidade de incertezas é inversamente proporcional a viabilidade do mercado. O ativismo judicial e ausência de segurança jurídica faz com que a Saúde Suplementar deixe de conseguir trabalhar com o risco calculado e passe a trabalhar com incertezas, tornando o cálculo atuarial menos relevante, porque as previsões acabam não sendo aplicadas na realidade e aí vão existir cada vez mais conflitos, ocasionando um ciclo vicioso que não é bom para nenhuma das partes.


É cristalino que a atmosfera do excesso de judicialização é péssima para as Operadoras, vez que diminui a previsibilidade do negócio, complica as estratégias de mercado, a orientação das equipes operacionais, gera um aumento de custos de operação com a equipe jurídica e a necessidade de se possuir um fluxo de caixa capaz de suportar o adiantamento das despesas até repassá-las ao beneficiário por meio de reajuste.


Essa necessidade de adiantar os gastos para sustentar as incertezas nos fundos mutuais gera um privilégio para as Operadoras maiores, pois apenas as grandes têm condição econômica de suportar. As incertezas deixam as Operadoras menores e com margem mais apertada em situações muito complicadas e vem preocupando a ANS, vez que 80% das operadoras de saúde possuem menos de 200 mil vidas, sendo necessários realizar estudos, programas de incentivo e calibragem regulação para que elas permaneçam viáveis, induzindo a concorrência.


Na saúde privada a condição orçamentaria guarda estreita relação com as contribuições dos beneficiários que é muito mais imediata entre o contribuinte (beneficiários do plano) e as Operadoras e demais agentes da Saúde Suplementar, então é muito claro que eventuais sobressaltos, impactos não estimados, riscos não previstos são repassados para o consumidor, causando impactos muito grandes.


Diante dessa perspectiva, fica evidente que o ativismo prejudica a sociedade como um todo, gerando dificuldade de acesso à Saúde Suplementar para as camadas mais vulneráveis da população, pois as incertezas aumentam o custo do fundo mutuário para que exista espaço de manobra e, por isso, os reajustes dos contratos ficam cada vez mais caros, subindo a régua de acesso e gerando uma evasão dos” dos beneficiários mais humildes da Saúde Suplementar e, consequentemente, sobrecarregando o SUS.


Além de terem que suportar o aumento das mensalidades com reajustes que ocorrem a cada ano para cobrir as incertezas e repor os prejuízos, os beneficiários são prejudicados pela falta de equidade, uma vez que, apesar de o direito ser idêntico, é difícil determinar se é forte ou fraco, uma vez que a interpretação pode variar de acordo com o magistrado que o julgar, o que traz uma sensação de injustiça ao beneficiário, uma vez que não tem certeza de que o seu direito é efetivo.


Diante desse cenário de insegurança jurídica e ausência de equidade, é ainda mais angustiante o risco de sucumbência, quando tendo ajuizado em vara cível, e não sendo beneficiário de justiça gratuita, os beneficiários que tiveram improcedência da ação, tendo investido naquele direito, baseado no resultado de outras pessoas, sai perdedor tendo que arcar com os custos de ter acionado o judiciário.


Não restam dúvidas de que a alta judicialização é prejudicial para todos os envolvidos direta ou indiretamente, sendo primordial que ocorra não apenas um melhor diálogo na tentativa de solucionar questões que eventualmente possam surgir ao invés da postura bélica costumeira, mas principalmente uma conscientização de todos os players sobre a legislação, regulação, jurisprudência para que nos casos em que a solução amigável não seja possível haja uma melhor condução do caso, fugindo da “loteria judiciaria”.


A mudança não é instantânea, embora já venha ocorrendo por parte do judiciário que vem buscando ter decisões mais técnicas, apoiadas nos Núcleo de Assistência Técnica do Judiciário e em perícias técnicas e pela Agência Nacional de Saúde Suplementar que tem se preocupado em manter o setor viável e criar regulações que mitiguem as incertezas as transformando em riscos mais calculáveis.


Uma estratégia que se mostra importante é o exercício de as operadoras ao negar alguma solicitação dos beneficiários se preocuparem em esclarecer, de forma fundamentada na legislação, contrato e/ou regulação, o porquê do indeferimento não apenas para afastar o sentimento de injustiça que motiva o ajuizamento, mas principalmente para educar seus beneficiários dos limites de cobertura.


Essa estratégia encontra obstáculos na existência de normas conflitantes com o Código de Defesa do Consumidor, pois geram argumentos para que o consumidor possa entrar com uma ação judicial para questionar a um indeferimento que entenda que viola seu direito e pleitear a cobertura deseja no judiciário, ainda que outra legislação e/ou a regulação não disponham no mesmo sentido.


O ciclo vicioso que envolve a judicialização excessiva na Saúde Suplementar só poderá ser modificado por meio de uma série de reformas abrangentes. Isso significa que é preciso estabelecer um acordo, uma base sólida de precedentes e uniformizações, além de uma atuação proativa e dialogada entre o legislativo, o judiciário, a Agência Reguladora e os prestadores de serviços. Essas medidas têm como objetivo tornar os direcionamentos mais uniformes, proporcionando maior clareza ao consumidor quanto aos seus direitos de forma equânime e justa.


Dessa forma, haverá uma diminuição das ações judiciais, das dúvidas e, consequentemente, um equilíbrio no fundo mutual, capaz de prever riscos e arbitrar valores de forma objetiva. Isso, por sua vez, permitirá a redução do valor das mensalidades, beneficiando tanto os consumidores quanto as operadoras de saúde.

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